João do Rio: O Intérprete da Cidade e da Alma Carioca

No alvorecer do século XX, o Brasil, em particular o Rio de Janeiro, vivia um momento de intensas transformações sociais, culturais e urbanas. Nesse contexto de efervescência modernizadora, destaca-se a figura singular de João do Rio, pseudônimo literário do jornalista, cronista e dramaturgo Paulo Barreto. Seu olhar aguçado, ao mesmo tempo sensível e crítico, registrou as contradições de uma cidade em metamorfose, elevando a crônica jornalística a um patamar artístico sem precedentes na literatura brasileira.

Marcelo J. Marques

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No alvorecer do século XX, o Brasil, em particular o Rio de Janeiro, vivia um momento de intensas transformações sociais, culturais e urbanas. Nesse contexto de efervescência modernizadora, destaca-se a figura singular de João do Rio, pseudônimo literário do jornalista, cronista e dramaturgo Paulo Barreto. Seu olhar aguçado, ao mesmo tempo sensível e crítico, registrou as contradições de uma cidade em metamorfose, elevando a crônica jornalística a um patamar artístico sem precedentes na literatura brasileira.

Paulo Barreto nasceu em 5 de agosto de 1881, na cidade do Rio de Janeiro, filho de Alfredo Coelho Barreto, professor e jornalista, e de Florência dos Santos Barreto, mulher de ascendência africana. A formação cultural do jovem Paulo foi marcada pela leitura precoce e pelo convívio com o ambiente intelectual frequentado por seu pai. Desde a adolescência demonstrou interesse pela escrita, iniciando sua carreira na imprensa carioca aos dezesseis anos.

Adotou o pseudônimo “João do Rio” a partir de 1903, quando já colaborava com jornais de grande circulação, como a Gazeta de Notícias, o Correio da Manhã e O País. O nome escolhido remete à tradição francesa dos cronistas urbanos – como Jean de Paris – e revela a intenção de construir uma “persona” literária comprometida com a observação e a interpretação da vida urbana.

João do Rio destacou-se como intérprete privilegiado do cotidiano da capital da República. Sua escrita, permeada por um lirismo sofisticado e por uma ironia aguda, captava tanto a beleza quanto a sordidez das ruas cariocas. Suas crônicas são testemunhos vívidos de uma cidade que se urbanizava, mas que ainda carregava os estigmas da escravidão recém-abolida e das desigualdades sociais profundas.

Em sua célebre série de reportagens intitulada As Religiões no Rio, publicada originalmente em 1904, João do Rio visitou templos católicos, centros espíritas, terreiros de candomblé e outras manifestações religiosas. Ainda que seu olhar por vezes se revele impregnado dos preconceitos da época, o trabalho possui grande valor documental e jornalístico, sendo um dos primeiros registros sistemáticos sobre o pluralismo religioso brasileiro.

Outra faceta notável de sua obra está em A Alma Encantadora das Ruas (1908), coletânea que reúne crônicas e perfis sobre tipos humanos e situações que o cronista encontrava ao longo de suas andanças pela cidade. O título, de forte carga poética, expressa a sensibilidade com que João do Rio enxergava os dramas anônimos da urbe – vendedores ambulantes, prostitutas, mendigos, artistas de rua – conferindo-lhes protagonismo e humanidade.

Embora João do Rio seja lembrado sobretudo como cronista, sua produção ultrapassa esse gênero. Como dramaturgo, escreveu peças como A Bela Madame Vargas (1905) e Colônia Cecília (1910), além de ter exercido papel relevante como tradutor e crítico literário. Seu livro O Momento Literário (1905) reúne entrevistas com escritores brasileiros, entre os quais Coelho Neto, Olavo Bilac e Lima Barreto, constituindo um importante painel da cena intelectual da época.

Sua escrita revela fortes influências do simbolismo, sobretudo no emprego de imagens sensoriais e no gosto pelo mistério e pela introspecção. Ao mesmo tempo, aproxima-se do realismo ao documentar com crueza as mazelas sociais. Essa fusão estilística confere à sua obra um caráter híbrido e inovador, que dialoga com as principais correntes literárias do seu tempo sem se prender rigidamente a nenhuma.

João do Rio foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1910, sucedendo Guimarães Passos na cadeira nº 26. Sua entrada na instituição marcou a vitória de um estilo literário nascido na imprensa e voltado para o cotidiano, em contraste com a tradição acadêmica da poesia parnasiana então dominante.

Faleceu prematuramente em 23 de junho de 1921, aos 39 anos, vítima de um ataque cardíaco. Seu funeral reuniu uma multidão nas ruas do Rio de Janeiro, atestando a popularidade e o afeto que conquistara junto ao público.

Nas últimas décadas, sua obra vem sendo redescoberta e reavaliada por críticos e estudiosos, que reconhecem sua contribuição decisiva para a consolidação da crônica como gênero literário autônomo. Autores como Ruy Castro, Beatriz Resende e Heloisa Buarque de Hollanda destacam sua originalidade estética e sua importância como testemunha do Brasil urbano em transição.

João do Rio permanece como uma das vozes mais singulares da literatura brasileira. Sua capacidade de captar os ritmos, as linguagens e os conflitos de uma cidade em constante mutação lhe garantiu um lugar definitivo no panteão dos grandes cronistas nacionais. Em suas páginas, o Rio de Janeiro se revela em sua multiplicidade: cidade do esplendor e da decadência, do progresso e da exclusão, da festa e da melancolia. Ler João do Rio hoje é reencontrar, com assombro e encanto, a alma de um tempo que ainda ressoa em nós.

Referências bibliográficas

  • BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

  • HOLLANDA, Heloisa Buarque de. João do Rio: O dândi, a cidade e o tempo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1996.

  • CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (Para contexto da crônica carioca.)

  • REZENDE, Beatriz. João do Rio: mestre da crônica moderna. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.

  • CRÔNICA BRASILEIRA. João do Rio. Disponível em: https://cronicabrasileira.org.br

  • WIKIPÉDIA. João do Rio. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/João_do_Rio

Foto de fundo utilizada:

A Avenida Central, atual Rio Branco, foi um símbolo da reforma urbana no início do século XX

Foto: Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles